quinta-feira, 14 de julho de 2011

15. Teologia e Heresia.

15. Teologia e Heresia.

I. Forças Básicas da Teologia.

1. Quando Paulo, no Areópago, teve que anunciar a boa nova a pessoas filosoficamente formadas (Atos 17), recorreu a conceitos e expressões familiares aos ouvintes: para a pregação da mensagem religiosa da revelação empregou conceitos 42 "filosóficos" ("Deus desconhecido"; "busca de Deus"; "nele vivemos, nos movemos e somos").
Aqui, na inteligência e fundamentação da revelação através da razão natural, reside o problema da teologia científica em geral, o problema de âmbito cultural grego, o problema da razão e da fé.
a) É o problema que sempre se projeta quando a verdade revelada se aproxima de homens espiritualmente autônomos. A razão, habituada a determinadas categorias, tratará por imperiosidade interna depor em relação às novas verdades com seu pensamento natural e de conciliá-las de algum modo; tratará de "compreender" científicamente a revelação.
b) Mas enquanto aparece este problema, surge também um perigo: o que se pode chamar racionalismo no sentido latus (geral). É dizer, nas tentativas de resolver dito problema facilmente se abriga a secreta esperança de poder traduzir a puros conceitos as verdades reveladas.
c) Por outra parte, sempre tem havido teólogos que não tem experimentado tão forte a necessidade de compreender a fé científicamente, que, em troca, tem tido um acusado sentido da tradição; neles tem incentivado sobre tudo a ânsia de conservar a tradição tal como a haviam recebido. Os homens desta classe tem desempenhado um papel muito importante na história da Igreja como custódios do depósito da revelação. Por isso a Igreja romana, apartir de Calixto, se tem preocupado mais em afirmar o monoteísmo absoluto por uma parte e a absoluta divindade e humanidade de Jesus por outra que de encontrar fórmulas capazes de esclarecer a conciliação de ambos elementos (cf. §§ 26 e 27). Quando esta tendência chegou a acentuar-se excessivamente, até ao extremo não só de sublinhar a incomparabilidade do anúncio de fé, senão inclusive de duvidar da capacidade da razão para ilustrar de algum modo a revelação, se planteou um segundo perigo: o fideísmo (§ 25).

2. A Igreja não podia aceitar nenhuma destas duas soluções extremas. O racionalismo, que em última instância, significava renunciar à revelação; aceitá-lo haveria equivaler a um suicídio. Por sua parte, o fideísmo haveria significado uma insuportável restrição; aparte de que no curso da história eclesiástica se tem convertido pelo regular no pior dos racionalismos. Também aqui a Igreja tem permanecido fiel a seu intrínseco universalismo (sistema do justo meio). Com ele tem dado base à teologia. A evolução dos dogmas, assombrosamente retilínea sempre, é tanto mais surpreendente (e inclusive sinal de uma direção divina) quanto que os guias mais competentes e santos da Igreja nem sempre tem sustentado respeito a um problema concreto a tese que ao final haveria de triunfar ou não se tem dado perfeita conta de seu alcance. Por exemplo, o grande Dionísio de Alexandria (+ 264), discípulo e sucessor de Orígenes, não se deu conta do alcance da disputa sobre o batismo dos hereges, e por isso se inclinou à tolerância. Cipriano, a diferencia de Roma, seguiu seus próprios caminhos. Os conceitos de Agostinho sobre a graça, a vontade e a predestinação não se podem reduzir integramente a um comum denominador. Por alguns conceitos como o da predestinação, a ortodoxia acusa a teologia de Santo Agostinho de ser o caldo de cultivo das teorias luteranas e sobre tudo das calvinistas. Respeito ao consensus patrorum (concordância doutrinal dos Pais da Igreja), que é tão difícil —por não dizer impossível— de constatar, há que ter presente a diversidade de cada uma das personalidades e escolas e suas mútuas divergências.
Em certo sentido, desta evolução se pode deduzir inclusive a importância positiva do erro na história.

3. O problema da teologia teve que fazer-se sentir mais fortemente à medida que o cristianismo se difundia pelo mundo de cultura helenística. O século II foi sua primeira época, mas não a clássica. Nos apresenta tanto a resposta católica como outras soluções discordantes. Nos séculos seguintes foram principalmente os gregos os primeiros que empreenderam a dogmatização das verdades de fé, é dizer, prepararam, asseguraram e desenvolveram o resultado dos concílios. Todos os concílios da Igreja antiga se celebraram em solo grego, com participação predominante de bispos e teólogos gregos. Mais tarde toda essa herança grega a recolheu Roma. A Igreja ortodoxa do Oriente, depois do VII Concílio Ecumênico (787), já não tem formulado mais dogmas. Mas tem que adicionar que, dado seu fechado carácter, tampouco os tem necessitado propriamente. No interior da Igreja ortodoxa grega a liturgia passou a ocupar, por assim dizer, o lugar da teologia, não só enquanto que grande parte da vida religiosa estava determinada por ela, senão que também a confissão da verdade se expressava preferentemente na forma litúrgica, a dizer, na adoração e louvor.

4. Os apologetas se ocuparam de dar uma resposta plenamente cristã 43. Seu labor de fundamentação se completou primeiramente naquele âmbito cultural onde a cultura grega se havia configurado e afiançado mais fortemente: em Alexandria. Aqui, na cidade de Filón, com suas famosas escolas, se fez sentir com maior intensidade a exigência de restabelecer a unidade entre a cultura espiritual recebida e a religião cristã revelada. Grandes grupos de membros da Igreja desejavam uma instrução religiosa que correspondesse às exigências de uma cultura superior. Por isso, precisamente aqui, em Alexandria, cujo bispo, após a destruição de Jerusalém, assumia nos primeiros séculos cristãos o segundo posto entre os patriarcas da Igreja, surgiu a primeira "escola superior" de religião, a primeira escola catequética. Seu primeiro mestre conhecido foi Panteno (+ 200).

5. Dos homens, o segundo e o terceiro diretor desta escola, nos mostram melhor que ninguém o espírito que ali reinava e os problemas que se planteavam e tratavam de solucionar: Clemente de Alexandria (+ 215) e Orígenes (+ 253-254).
a) Clemente, discípulo de Panteno, dirigiu a escola muito pouco tempo (aprox. desde 200). Mas em 202-203 fugiu para a Ásia Menor diante da perseguição de Septimio Severo. Com sua vasta erudição clássica e santo entusiasmo chegou a alcançar a plenitude da verdade cristã e a anunciou em uma linguagem enormemente poética. Viu claramente pela primeira vez (cf. Justino, § 14:4) a íntima harmonia de tudo quanto há de verdadeiro no mundo, e como também o paganismo, parcialmente ao menos, havia evoluído em direção a Cristo. Defendeu uma gnose ortodoxa e no essencial evitou o perigo de uma redução da revelação à filosofia. Não nos consta que fora sacerdote.
b) Clemente foi superado pelo homem mais douto da Igreja oriental, Orígenes. Nasceu provavelmente por volta de185 em Alexandria, donde o bispo Demetrios o nomeou aos seus dezoito anos, sendo ainda secular, sucessor de Clemente na direção da escola catequética. Ele combinou sua própria actividade docente com a assistência às lições do famoso neoplatônico Ammonio Sacas. Quando os ataques massivos dos pagãos obrigaram-no a fechar a escola, Orígenes marchou a Jerusalém e a Cesaréia. Alí pregou ele, secular, com aprovação (ou por convite) dos bispos locais. Mais tarde esteve também em Roma com o papa Zeferino, e logo com o antipapa Hipólito.
Em 230, durante uma viagem à Grécia, foi ordenado sacerdote em Cesaréia na Palestina por uns bispos amigos, apesar de sua automutilação, mais exatamente castração,(as Regras Apostólicas proíbem ordenar sacerdotes a pessoas que haveriam cometido dito crime, se bem que permite aos eunucos " se são dignos" de exercer o ministério. As Regras Apostólicas anteriores ao V Concílio -e também posteriores- incisos 21 e 22 dizem a respeito: "21. Um eunuco convertido em tal por influência dos homens, ou privado de sua virilidade pela perseguição, ou nascido em dito estado pode, se é digno dele (das ordens sacerdotais), converter-se em bispo" e "22. Se alguém se tem automutilado, não se converterá em clérigo, já que seria assassino de si mesmo, e inimigo da criação divina") levada a fim mais de vinte e cinco anos atrás por uma falsa interpretação de Mt 19:12. O bispo de sua cidade, que não havia sido consultado para a ordenação, apesar da intervenção de diversos bispos em seu favor, o excluiu do estado sacerdotal e da Igreja, medida grave e pouco inteligente, logo confirmada pelo papa. Assim, pois, Orígenes voltou outra vez a Cesaréia em 231, donde abriu sua própria escola de catequese, entre cujos discípulos figurou Gregório o Taumaturgo.
A erudição de Orígenes, como sua aplicação, supera todo o imaginável. A sua enorme capacidade de trabalho correspondia uma igualmente grande fecundidade literária. Não só comentou quase toda a Sagrada Escritura desde diversos pontos de vista; também foi pioneiro na reconstrução filológica exata do texto dos Livros Sagrados (= do Antigo Testamento), colocando o texto hebreu (em língua hebréia e em sua transcrição grega), mais quatro traduções gregas já existentes, em seis colunas (= Hexapla) uma junto a outra. Foi também o primeiro que redigiu uma dogmática geral e científica do cristianismo, ainda que orientada no sentido apologético, em uma espécie de manual das principais doutrinas cristãs (Peri Archon = De Principiis). Na biblioteca de Cesaréia se conservaram suas obras póstumas; de todas elas se serviu Eusébio para sua História da Igreja.
c) Se bem que para seu predecessor Clemente a revelação geral polarizava talvez excessivamente a atenção (em razão da afinidade do homem natural com Deus), Orígenes, em troca, a mudou decididamente do centro e cria uma nova e original "filosofia" cristã. Em alguns pontos de sua poderosa construção especulativa não logrou estabelecer a correta relação entre a fé cristã e a filosofia grega. Às vezes o elemento filosófico grego adquire excessivo alívio, em prejuízo do elemento religioso cristão. Isto se verifica de ver em particular em sua doutrina da eternidade do mundo, das almas como espíritos caídos e em sua opinião de que ao final dos tempos tudo, inclusive os condenados, retornarão a Deus (apokatástasis). Estas idéias foram posteriormente condenadas por distintos concílios.
Mas é certo que Orígenes jamais quis sustentar uma doutrina contrária à consciência de fé da Igreja. Foi uma personalidade respeitosa e verdadeiramente cristã, que foi considerada suspeita pelas autoridades eclesiásticas de Alexandria, mas de um modo parcialista e vergonhoso para elas mesmas. Esta crítica levou mais tarde a um imerecido descrédito da obra literária daquele grande homem, de modo que a incomensurável plenitude de seu pensamento não tem sido, por desgraça, tão fecunda para a Igreja como houvera sido de desejar. Morreu com a idade de setenta anos por consequência das torturas que havia padecido por sua fé sob a perseguição de Décio. Depois de seu "martírio" recebeu do bispo de sua cidade, por seu antigo discípulo Dionísio, a carta de reconciliação.
d) Do exemplo de Orígenes se pode deduzir claramente que a mensagem cristã todavia não havia alcançado então uma fixação teórica plenamente unitária. É notória a diversa valoração de sua ortodoxia por parte dos bispos; tampouco consta necessariamente que o juízo de seus adversários deve ser predominante em tudo. Certamente, é ele um dos grandes pioneiros da entrada espiritual do cristianismo no ecumene. Com sua doutrina favoreceu à difusão do reino de Deus, com sua fortaleza de fé e de espírito opôs uma resistência vitoriosa à heresia declarada e em muitas Igrejas cobriu as dificuldades doutrinais.
Seu ardente amor a Cristo e à Igreja está fora de toda dúvida.
Também Orígenes, com o poder de sua ciência, incrementou consideravelmente o prestígio social do cristianismo. Julia Mammea, mãe do imperador Alexandre Severo, o fez vir à Antioquia e ali escutou suas conferências. Pode dizer-se que sua escola foi visitada por todo o mundo culto.
Orígenes é um expoente da síntese entre cultura e fé, cultura e vida sobrenatural, teologia e consciência de fé da Igreja.
Com ele pode dizer-se que na história do cristianismo aparece pela primeira vez um mérito próprio da ciência: o interesse de compreender objetivamente a ideologia do contrário. "Aprendeu de todos aqueles a quem combateu; todos seus adversários foram também seus precursores" (Harnack). Em uma palavra: sabia escutar com humildade e com fé.

6. No século III surgiu também outra escola teológico-cristã em Antioquia, tão célebre como Alexandria por suas boas instituições docentes pagãs. Esta escola foi especialmente relevante para o desenvolvimento da vida da Igreja e da teologia. Em certo modo fazia a competência à Alexandria; sua oposição em concreto residia em sua metodologia científica, oposição que se manteve desperta e cresceu constantemente graças às discussões eclesiásticas entre os dois patriarcados de Alexandria e de Antioquia.
Em Alexandria se preferia a exegese da Sagrada Escritura ou método alegórico-místico; a escola de Antioquia era mais sóbria e trabalhava mais conforme o método crítico-histórico e gramático-lógico. Um de seus fundadores foi o sacerdote antioqueno Luciano 44 (+ como mártir em 311-312), mestre de Arrio, quem a partir dos sessenta anos ensinou em Antioquia (§ 26). Mas o período de esplendor da escola se iniciou com Diodoro de Tarso (+ 349). Sua influência repercutiu também na escola de Edessa, cujo mestre mais famoso foi logo Efrém da Síria (+ 373), de grande relevância teológica.

II. O Problema da Heresia.

1. Toda a tradição cristã está firmemente convencida de que só "a Igreja" tem o poder e o dever de ensinar as verdades de fé.
O desvio da verdade eclesiástica comum é heresia.
a) Há heresias que concernem diretamente à vida religiosa, isto é, à vida ético-religiosa (por exemplo, os montanistas, § 17), ainda que também implicam (necessariamente) equivocadas concepções doutrinais.
Aquí, neste contexto, nos ocupamos daqueles tipos de heresia que diretamente se relacionam com a doutrina e, consequentemente, com a teologia, enquanto são uma tentativa de "compreender" o conteúdo da revelação por meio da razão natural.
b) O Senhor havia anunciado que no reino de Deus o joio haveria de crescer junto com o trigo até o último dia da colheita; e, segundo as palavras de Paulo (1Cor 11:19), teria que haver divisões (heresias). De fato, a história inteira da Igreja de Deus está sulcada de heresias, sempre novas e condenadas pela Igreja.
c) Para compreender a história eclesiástica e extrair dela uma valoração científica da Igreja e sua doutrina é absolutamente necessário por em claro primeiro a essência e a origem da heresia. O que se ventila é o problema central da unidade ou não unidade da Igreja sob a forma particular da formulação teológica. Se isto não está claro desde o princípio, a exposição da história da Igreja corre o perigo de diluir-se em uma desordem inconexa das mais variadas e até contraditórias proclamações e explicações da doutrina de Jesus. A história da Igreja se desintegraria na história dos fenômenos cristãos. O conceito da única verdade cristã se veria basicamente ameaçado. E com ele a idéia e a realidade da Igreja. Assim as coisas, devemos determo-nos um pouco mais em umas considerações previas imprescindíveis.

2. Heresia, segundo sua etimologia grega, é uma eleição unilateral. A teologia ortodoxa sob a direção da Igreja a) põe de alívio em primeiro lugar o artigo de fé revelado, isto é, a norma inteira da fé, esta disposta a acolher a plenitude da revelação e medido todos os resultados do próprio conhecimento segundo sua consciência de fé (é diante de tudo "ouvinte" e "confessor" da fé, antes de explicá-la); e b) se cuida intensamente de dar razão proporcionada de todas as verdades de fé. Na heresia, pelo contrário, esta postura é deslocada de dois modos: a) o desejo de explicação, isto é, o próprio juízo humano prevalece sobre a fé objetiva pregada pela Igreja e sobre a postura de ouvinte; um se pergunta primeiro (às vezes inconscientemente) que possibilidades há diante de escutar a revelação: atitude subjetiva em lugar de objetiva; b) de todo o conjunto da revelação se faz uma seleção: em lugar de síntese católica, unilateralidade herética. A essência da heresia é subjetivismo e a unilateralidade. (A seleção e o deslocamento nem sempre tem lugar pela via da reflexão; a pouco também concorrem influências falseadas de antigos conceitos religiosos ou morais transmitidos ou recebidos. Este foi em parte o caso, por exemplo, das heresias religiosas dos séculos I e II [judaísmo, gnose judaizante, milenaristas], o que apareceu como um perigo para a pureza do cristianismo entre os germânicos [cf. § 341]).
Uma rápida viajem através das heresias de todos os séculos prova eloquentemente quanto se tem dito. Sempre, para em nosso tempo, a investigação filosófica subjetiva da "essência do cristianismo" tem levado à unilateralidade herética, é dizer, para um ponto donde não existia a consciência viva de que esta essência não consiste precisamente em uma ou em outra parte da mensagem, senão em uma e na outra, em ambos como, ou seja, na plenitude; ou também não alentava a idéia de que só o organismo vivo da "Igreja" pode conservar integramente e expor retamente essa plenitude, que, a sua vez, também é algo vivo em sí mesma. Tal recorrido através da história mostra a Igreja, também neste assunto, como sistema do centro, da síntese, guardiã de todo o tesouro da revelação.

3. A síntese, não obstante, implica também tensão e oposição, e por isso muitas vezes resulta difícilmente na verificação científica em abstrato da íntima harmonia dos diversos elementos doutrinais; contudo, a dificuldade de unir dois pólos opostos jamais tem autorizado a negar a existência de um ou do outro. Tensão e oposição não significam contradição, senão que formam parte da plenitude, é dizer, de uma fecunda harmonia. De fato, a refutação contra os hereges se tem levado de tal modo que os tem demonstrado que eles não acreditavam em que a maioria, ou que a tradição, senão que mais bem anunciavam algo novo, que estavam sós.
Por outra parte, o homem não deve excluir do serviço divino a razão criada por Deus. Pelo mesmo, à sua vez, a condenação de uma heresia não comporta a condenação da crítica, como tampouco da teologia científica.
Com ambas exigências, a da plenitude e a da crítica, há de estar ligada à verdadeira exposição da história da Igreja. Por isso, identificar —como tantas vezes se tem feito— por princípio a heresia com a maldade (e em especial com o orgulho) não é mais que um prejuízo. A unilateralidade das heresias radica não poucas vezes na ardente vontade de buscar pessoalmente a verdade salvífica correta. E as mais das vezes também depende das idéias básicas filosóficas ou teológicas recebidas. Heresias surgidas deste modo recorrem à história inteira da Igreja em tal número que não é possível explicar-se satisfatoriamente sua função na história de não recorrer, também neste caso, ao conceito da felix culpa. A realidade das heresias se evidência a si mesmo à limitação do poder cognoscitivo do homem. Agustinho e Jerônimo o tem declarado de diversos modos: "Ninguém pode construir uma heresia a não ser que esteja dotado de ardente zelo e dons naturais. Desta espécie foram tanto Valentino como Marción, de cuja grande erudição nos falam as fontes" (Jerônimo). Para a postura de Agustínho frente aos donatistas, veja § 29.
Uma realidade tão oprimente como ilustrativa da complexidade das forças em jogo é o fato de que os esforços científicos em torno da doutrina da Igreja (seja para defendê-la, seja para expô-la positivamente) nunca tem acertado com a doutrina íntegra e pura em um tanto por cento mais ou menos elevado.
Isto é especialmente chamativo nos primeiros tempos, antes de Constantino e do primeiro concílio. Não houve então nenhum teólogo que de uma ou outra forma não imaginara a Cristo como essencialmente subordinado ao Pai (Justino, Hipólito, Novaciano, Tertuliano). Inclusive a idéia de Deus se expressava de ordinário muito confusamente, dada a grande influência (Justino) das idéias estóicas (e neoplatônicas). Também havia representantes do quiliasmo e idéias equivocadas sobre o Espírito Santo (Hipólito) ou sobre o batismo dos hereges.
Todas estas coisas, sem embargo, não levaram a Igreja de então a expulsar sensivelmente a estes escritores; a alguns deles os venera inclusive como santos. Isto responde ao fato de que defensores de doutrinas não ortodoxas ou antipapas, como Hipólito e Novaciano, suportaram valentemente por Cristo as perseguições e o desterro. Todos eles nos ajudam a explicar com a necessária amplitude de espírito o fenômeno da "heresia." A Igreja, por assim dizer, tem deixado crescer o joio até chegar ao tempo da claridade total e, com ele, também da sanção; tinha tempo e se o tomou, enquanto não cabia dúvida alguma do fervor religioso de uma genuína postura de fé. Assim, com feitos e não com palavras, tem chamado expressamente a atenção sobre a diferença entre fé e formula de fé, é dizer, entre a fé e sua formulação teológica ou teoria da fé. Já então alguns se deram conta do problema e muitas vezes adicionados a suas explicações, como Tertuliano, por exemplo, a observação de que deviam ser interpretadas unicamente no sentido da fé geral da Igreja.

4. Não obstante a importância destes pontos de vista, o problema teológico da história da Igreja a este respeito não está resolvido. A base para uma valoração definitiva das divisões é mais bem esta: por vontade do único Senhor não deve haver mais que uma Igreja e uma doutrina. Conforme as suas palavras sobre um único pastor e um só rebanho é de acordo com a oração sacerdotal (Jo 17:21ss: ut omnes unum sint), as separações estão em radical contradição com sua vontade. Assim, ainda naqueles que se tem separado, se tem mantido sempre vivo até tempos recentes, pelo menos em teoria, o pensamento de uma doutrina e uma Igreja. De fato, em visão de conjunto, até o século XI não tem existido mais que uma Igreja Universal. O problema de uma separação duradoura se dá a partir do cisma entre a Igreja oriental e ocidental no ano 1054 (§ 54) e o de uma separação da fé a partir do século XVI.
A questão fundamental, que permite adotar uma postura científica, é a da continuidade e sucessão apostólica. Que até o século XI estava resolvida claramente a favor da Igreja católica 45 era também opinião dos reformadores. O fato de que esta unidade na Antigüidade e na Idade Média estivesse muitas vezes protegida pela intervenção do poder estatal cristão não é uma objeção legítima mais que desde um ponto de vista moderno-espiritualista, mas não desde o ponto de vista do evangelho.

5. Antes do século XI, sem embargo, também houve fatos que de tal modo afetaram a unidade da Igreja em sua aparência concreta, que teremos que estudá-las mais cuidadosamente. A parte da já mencionada falta de claridade doutrinal dos mestres católicos do período pré-niceno e épocas posteriores, não há que subestimar nem a força nem a duração dos cismas e das Igrejas cismáticas que ensinavam doutrinas heréticas.
Nos tempos primitivos, ou seja, até o fim dos tempos apostólicos, a evolução está clara: apesar das divergências doutrinais e certos partidarismos (eu sou de Paulo, eu de Apolo, 1Cor 3:4), não só prevalece a consciência da unidade de todas as comunidades em uma Igreja, senão que os cristãos verdadeiramente viviam essa unidade. Esta unidade se fez problemática quando uma comunidade isolada ou mais amplas circunscrições eclesiásticas com seus bispos se creram, em virtude de certos méritos espirituais e religiosos, ou também econômicos e políticos, não dever de reclamar uma posição especial com direitos próprios.
O bispo particularmente, ante sua consciência e a consciência de seus fiéis, era antes de tudo o bispo desta única Igreja, estava em seu próprio direito frente às outras Igrejas. Também era natural que se formassem grupos. Nas disputas trinitárias e cristológicas e nos correspondentes concílios encontramos a estes grupos como forças que tomam parte decisiva nas definições doutrinais. Houve autênticas competições. Alexandria e Antioquia se convertem pela sua disposição espiritual em centros de poder. Desde o ponto de vista político, este se acusa da forma mais evidente em Constantinopla (cf. a este respeito as diversas consequências das controvérsias trinitárias e em especial as cristológicas).
O mesmo problema se adverte, ainda que na outra forma, nas lutas das heresias ocidentais do norte da África: a questão do batismo dos hereges, o pelagianismo, o donatismo e, anteriormente, a festa da Páscoa. Também o mesmo problema se apresenta, ainda que com distinta orientação, em geral desconexão das Igrejas particulares que provocou a migração dos povos, o que mais claramente se verá no posterior processo de cristalização do reino dos francos até a unidade do Ocidente cristão com a Igreja latina.

6. Muitas daquelas correntes não ortodoxas ou não completamente ortodoxas sucumbiram relativamente logo, ainda que durante certo tempo e em determinadas regiões causassem grande confusão e juntassem graves perdas, como, por exemplo, os donatistas (§ 29).
Também ao lado de tudo isto há outra série de fatos não menos sérios e inquietantes. Na Antigüidade, junto a "grande Igreja" universal, houve rupturas de Igrejas heréticas autônomas tão importantes e duradouras que houveram de condicionar profundamente o quadro da expansão da Igreja. A difusão dos partidários de Marción e de Mani foi tão grande que bem se pode falar de movimentos universais.
O fenômeno chegou a constituir um gravíssimo problema, no sentido propriamente teológico e teológico-eclesiástico, não donde se tratou de uma formação mais ou menos pagã (sincretista), senão donde se tratou de Igrejas cristãs heréticas, fora da ortodoxia, de grande extensão e duração. Neste sentido é impressionante a história do nestorianismo e sua condenação em Éfeso. E sobre tudo no que respeita à Igreja nestoriana da Pérsia. Prescindindo de sua irradiação no norte da África, muito importante para a evolução de Mohamed, a dizer, para os elementos cristãos que recolheram, o nestorianismo teve uma profunda infiltração em todas as províncias da China 46; teve, ademais, grande influência sobre os árabes, que conquistaram a Pérsia, e sobre os mongóis, que se apoderaram da Pérsia depois dos árabes, no ano 1258. Às vezes pareceu como se todo o Oriente pagão se houvera convertido na Igreja nestoriana. O mesmo pode dizer-se do poderoso e persistente monofisismo (§ 27).
Se incluíssemos em nosso exame toda a série de heresias e cismas menores dos primeiros tempos do cristianismo, tal como se nos conta nos Atos dos Apóstolos, em Irineu, Tertuliano, Orígenes, Eusébio, etc., resultaria uma variedade incrível de seitas dos mais diferentes tipos, ainda que em si formalmente unitárias, e de tal vitalidade (como demonstra sua difusão) que não se poderia por menos que ver nelas uma séria ameaça para a vida do cristianismo, apenas nascido.
Estas seitas não eram mais que uma deformação da verdade cristã. Mas o veredito do Senhor (Mt 12:25) 47 não as afetou ilimitadamente. Este reino não caiu; através daquelas deformações não estava essencialmente dividido. À vista dos mártires que produziram algumas das Igrejas separadas, à vista de seu zelo religioso e ante a ampla difusão e larga duração de alguns cismas, não é legítimo falar de ramos secos, desgarrados do tronco.
O mistério deste fenômeno religioso-eclesiástico pode aclarar-se a si: à unidade do cristianismo depende da unidade de sua verdade. Mas esta verdade não é somente uma doutrina. Tampouco os nestorianos e os monofisítas, unanimemente condenados pela Igreja ortodoxa tanto oriental como ocidental, se haviam separado absolutamente da verdade cristã. Seguiram sendo cristãos, professando a Jesus Cristo, Senhor e Redentor, Deus e homem. A evolução moderna nos demonstra quão profunda é a unidade. Nos pontos em que os monofisitas e os nestorianos permaneceram fiéis à suas doutrinas primitivas, às diferenças com a doutrina verdadeira tem permanecido reduzidas hoje a meras diferenças de palavra. A unidade da Igreja é algo muito distinto da uniformidade. Mas, por outra parte, essa unidade subsiste também em não ter nenhuma contradição interna. Este era o convencimento de todas as Igrejas até a confusão espiritual da Idade Moderna.

42 Em Éfeso ensinou em uma aula filosófica (Atos 19:9).
43 Como contrapartida, junto com a gnosis, temos que considerar aqueles que queriam helenizar o cristianismo, aos quais se refere Eusébio chamando-os teodocianos. Para eles, como para Apeles (discípulo de Marcion, § 16), desempenhava um papel muito importante à alta estima, quase religiosa, do silogismo, como uma força que obrigava a consciência, de modo que seu descuido seria pecado.
44 Não deve confundi-lo com o orador pagão Luciano de Samosata, que até o ano 170 escreveu uma sátira contra os cristãos.
45 Desde o século II o nome de católicos (a expressão "Igreja católica" aparece pela primeira vez em Ignácio de Antioquia) está difundido por todas as partes para designar aos membros da Igreja "grande" e diferenciá-los das comunidades menores dos hereges.
46 E incluso mais ao norte; também foi nestoriano o primeiro mosteiro cristão da China; igualmente foi nestoriana a primeira Bíblia da china.
47 "Todo reino dividido será devastado."

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Attikis, Greece
Sacerdote ortodoxo e busco interessados na Santa Fé, sem comprometimentos com as heresias colocadas por aqueles que não a compreendem perfeitamente ou o fazem com má intenção. Sou um sacerdote membro da Genuina Igreja Ortodoxa da Grecia, buscamos guardar a Santa Tradição e os Santos Canones inclusive dos Santos Concílios que anatematizam a mudança de calendário e aqueles que os seguem, como o Concílio de Nicéia que define o Menaion e o Pascalion e os Concílios Pan Ortodoxos de 1583, 1587, 1593 e 1848. Conheça a Santa Igreja neste humilde blog, mas rico no conteúdo do Magistério da Santa Igreja. "bem-aventurado sois quando vos insultarem e perseguirem e mentindo disserem todo gênero de calúnias contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos pois será grande a vossa recompensa no Reino dos Céus." "Pregue a Verdade quer agrade quer desagrade. Se busca agradar a Deus és servo de Deus, mas se buscas agradar aos homens és servo dos homens." S. Paulo. padrepedroelucia@gmail.com